sábado, setembro 25, 2004

Há senhores, senhoras, meninos e meninas que não têm a felicidade de nascer como tu, saudáveis. Como aqueles que a mamã conheceu quando era da tua idade, e ía para a escola onde a avó dava aulas. Aqueles que muitas vezes não aprendem a ler, escrever, ou sequer a falar. Aqueles cujos olhinhos foram maus e não vêm nada para além de escuro, como do teu quarto, que não gostas. Aqueles a quem Deus levou sem querer as perninhas, ou os bracinhos. São pessoas diferentes, não deficientes, mas com deficiências. E lutam, como a mamã, e como todos nós, por uma vida melhor, mediante os condicionalismos que têm. Lutam contra uma sociedade ou um grupo de outras pessoas que os marginalizam e os desprezam, porque, ao contrário da mamã, não cresceram com eles.
No outro dia víamos atentas estes senhores a jogarem uns jogos especiais na televisão. Era uma prova de natação, numa piscina enorme de azul, onde tu gostas tanto de mergulhar, amor. E a mamã chorava compulsivamente, não de tristeza, mas de orgulho. Por sentir que há países onde estas pessoas diferentes são valorizadas, e apoiadas, e queridas, e vangloriadas. Porque o mundo está a mudar, e no nosso país, felizmente, nem que seja apenas nestes dias, todos nós nos preocupamos com as diferenças destes senhores, e senhoras. Porque o dos senhores que nadava, parecia um peixinho, e não tinha braços, e nadava com mais força do que todos. Quanto mais ele nadava, com o corpo ondulante à tona da água, mais a mamã, tonta, chorava!
No final ganhou. Saiu da água com um sorriso estampado nos rosto, e uma alegria desmedida que visivelmente lhe saltava do peito. A mamã chorava mais ainda. E tu, indignada, quase zangada, dizias: "O senhor não tem braços. Assim não pode vestir a roupa..."

sábado, setembro 18, 2004

Passo a vida a tentar compensar-te pelo que não consigo ser, amor.
Hoje ía a conduzir em direcção a um restaurante de fast-food, enquanto na tua cadeira, no banco detrás, batias palminhas de alegria e cantavas. Estás feliz, porque estou contigo. Não te cansaste de repetir "mamã, hoje vou contigo!". Como se fosse a coisa mais extraordinária que fizeste nos últimos tempos... Mas não deixavas de ter medo que te levasse para a escola. Conheces o caminho, e pensavas que te estava a enganar. Já te apercebes de tudo, mas a mamã não te mente. Nunca...
O problema, amor, é que a mamã teve quis mudar de vida e de trabalho, e ficou mais longe de ti, dos teus horários, da tua vida. A mamã deixou de poder levar-te à escola todos os dias, deixou de passar os fins-de-semana sempre contigo, e muitas vezes, quando chega à noite, já tu dormes descansada e feliz.
Mas tenho medo, querida. De não corresponder aquilo que esperas de mim. Porque sinto que sentes a minha ausência. Porque me pedes para não trabalhar, ou para te levar comigo. Não posso, linda...
Mas acredita, bebé, que este é um momento mau de nós, que vai passar. E que a mamã, quando te deixa, fica mais pequenina. Porque queria estar contigo sempre! Por isso é que tenta compensar-te com outras coisas. Na esperança de que um dia a vida se altere e melhore, e possamos ser nós duas outra vez...

quinta-feira, setembro 16, 2004

A mamã bem de esforça, e luta, e refila, e esperneia, mas a vida é difícil, e prega-nos partidas. Nem sempre o que queremos, ou desejamos se realiza. Há dias bons, outros nem tanto. E hoje é dia de nem tanto. Desculpa, querida...

sábado, setembro 11, 2004

A mamã saiu de casa com o papá, fez três anos, num dia normal de férias e de compras. Ías chegar, passado pouco tempo, e era necessário antecipar o teu regresso. Naquela altura, parámos num restaurante onde dezenas de rostos incrédulos olhavam para a televisão a fixar imagens que julgámos, inicialmente, serem de um filme. Bastante real...
Há coisas que os grandes fazem, amor, que não têm explicação. Como matar milhares de papás e mamãs de outras crianças, que a única coisa que faziam, naquele dia, era trabalhar. Afinal, era um dia tão vulgar como os outros.
Quando cresceres, princesa, vais perceber que o mundo nunca mais foi o mesmo, desde aquele 11 de Setembro. E que a palavra medo ganhou outro sentido.
Desde aquele dia que tenho a certeza que, aconteça o que acontecer, permaneces em mim e eu em ti, e não há barreiras, nem homens, nem aviões, nem tristezas, nem ausências, nem perdas, nem dores que me afastem de ti.
Porque hoje, se é possivel, e por respeito a quem perdeu quem mais amava, a mamã ainda te ama mais...

quinta-feira, setembro 09, 2004

Detestas acordar de manhã, bebé! Limitas a tua vidinha pequena aos horários que estabeleceste, e é tão difícil contrariá-los. À noite nunca tens sono. Queres sempre brincar até ao último minuto, escorrergar, ler, pintar... Ou, se por algum motivo, há mais gente em casa da avó, não páras até que a última pessoa se vá embora. Aguentas e combates o sono, guerreias com os olhos, que teimam em fechar, e continuas em grande animação. Chego a pensar que o avô, lá do céu, em vez de te guardar umas asas lindas, brancas e fofas, te deu pilhas. Daquelas que se carregam, todas as noites, e duram, duram, duram...

Toda a gente diz que é bom seres assim, agitada. Também acho, amor. Estimula-te os sentidos. O contacto connosco, os grandes, permite-te grandes façanhas, tais como: reconhecer desde à muito tempo, a letra "A", sem dificuldade; contar até 10 na perfeição, reconhecendo tambem já alguns números; falar correctamente, sem esquecer nenhuma letra. Consegues até, de vez em quando, acrescentar uma ou outra palavra ao nosso dicionário. No outro dia, apontavas para o rabinho e dizias "Mamã, tenho duas "safufas". Uma deste lado e outra deste". Tens razão, querida... a palavra é sem dúvida mais bonita do que bochechas! Não fosse eu tua mãe, para não te achar a mais linda, a mais inteligente, a mais perfeita. É um estatuto que se me confere desde que nasceste. Ser tão pouco subtilmente orgulhosa de ti!

Mas o teu sono, filhota, é que me tira horas de cama a mim. Tenho que acordar 90 minutos antes do trabalho, para que possas estar pronta a tempo, o que é ridículo no ambiente em que vivemos. Não há filas de trânsito, não há stress, não há nada! Só tu, calma e alva, que permaneces num sussurro quente, de respiração doce. E eu, cá com os meus botões, vou inventando métodos que te arraquem dos braços de morfeu. Como ontem, que te prometi que se acordasses, que podias desarrumar o quarto todinho. E era ver-te com uns olhos enormes, a acordar...

sábado, setembro 04, 2004

Queres sempre falar ao telefone, tonta. Começas aos saltinhos, e a dizer "quero falar". E eu adoro falar contigo. Acabo sempre às gargalhadas. "Tu chamas", e eu respondo "Maria Cachucha", ao que tu dizes a rir "Não és nada, és a Maria Mamã". E tu quem és? "Joana", dizes com convicção. Adoras o nome, e isso faz-me pensar.

Também não escolhi o meu nome, filhota, ninguém escolhe. Houve até alturas em que o detestava. Actualmente adoro. Fica-me bem, está bem comigo. E o teu tem uma história simples, que te posso contar querida. Estava um dia no escritório onde o papá trabalhava na altura, que tinha muitos contactos com a filial espanhola, onde havia uma Elena. Assim que olhei para o nome tive a certeza que era assim que te chamarias. É forte e feminino, como tu, com um toque se sensualidade, de sonho e de luz. D' A Minha Luz.
Portanto foi consensual. Tinhas que ser Maria, por convicção. Para fazer renascer a tradição portuguesa, sem aquela herança forte e pesada dos símbolos religiosos inerentes. Maria cheira a frescura de nuvens e a azul de céu. Tem textura de lençóis brancos acabadinhos de passar. E Helena sabe a bombons, a chupa-chupas e a gomas docinhos como tu...

sexta-feira, setembro 03, 2004

Tinhas poucos meses quando achei que era altura de me separar de ti, de te abrir os horizontes! Foi em Julho, pouco tempo antes de seres baptizada, quando inventei mil e uma desculpas para não te deixar nos braços de outra pessoa! Era uma casa nova, algumas caras novas, novas mamãs, muitas crianças. Mas um sítio daqueles que nos transmite confiança. Como se fosse a casa. A nossa casa. Agora sei que foi mais difícil para mim do que para ti! Quando ficavas ao colo da Bela sorrias, ou rias às gargalhadas. E foi, durante tantos meses assim. Eu, agarrada ao telemóvel. Nunca mais o desliguei um só segundo. Cheguei a testá-lo vezes sem conta, para ter a certeza das certezas de que estava a trabalhar, a funcionar, em perfeitas condições. Com medo que te acontecesse alguma coisa. Sempre...
Ao fim ao cabo tinham sido sete meses de mim e de ti. De nós, das duas. Em que tinha aprendido tudo contigo, em que tinha apelado ao meu instinto que te protegesse, e que te amasse de uma maneira tão perfeita, tão incondicional. Custou-me. Doeu-me muito. Tive ciúmes. Sempre a negar a mim própria que tu, minha menina, crescias com as flores, ao som da música, com o bater suave do vento na janela. Crescias depressa, e soltavas-te de mim!
Agora já me habituei às tuas fases. Houve um tempo em que a escola te assustava, não te cativava. Que preferias ficar comigo ou com o papá, em casa, na praia, ou simplesmente a brincar. Tinha que te mentir para te levar, sem que chorasses compulsivamente. Nessa altura sim, doía, porque te sentia receosa, e pactuava com o facto de saber que ficavas insegura. Tu, insegura... a minha menina determinada...
O tempo passa, amor. Os dias sucedem, as noites acontecem, as estações do ano mudam. Tens feito de mim uma Primavera constante, pintada de cores. E só agora, que começa o Outono, me apercebi que cresceste muito mais do que esperava. Estás na pré, amor. Mudaste de sala. E estás tão feliz. A mamã comprou uma mochila nova, que só as meninas crescidas têm. Com rodinhas e tudo. Cor-de-rosa. E tu não a largas. Como que a anunciar a tua independência. Puxas por ela a toda a hora. Enches as bolsinhas de brinquedos, de roupa, de tostões, e és feliz. Na tua sala nova, onde vais aprender a ser maior, fizeste-me um desenho igual a tantos outos que já fizeste, nas paredes ou no papel. Mas este, filhota, é especial. Porque é o início ou o princípio ou a continuação da tua vidinha pequena. Tão fresca e tão doce como tu...